O princípio da isonomia, previsto no artigo 5º da Constituição, estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. No entanto, o instituto do foro por prerrogativa de função — popularmente conhecido como foro privilegiado — constitui, na prática, uma exceção que relativiza esse postulado fundamental ao criar um regime jurídico especial para determinadas autoridades públicas, julgadas por instâncias distintas daquelas previstas para o restante da população.
Ainda que historicamente justificado como uma proteção ao livre exercício de funções públicas relevantes, o foro privilegiado tornou-se, com o tempo, um instrumento de disfunção institucional, dificultando a responsabilização penal de agentes políticos, especialmente no âmbito do Congresso Nacional. Deputados e senadores, por exemplo, são processados e julgados originariamente pelo Supremo Tribunal Federal, sem que tenham acesso ao duplo grau de jurisdição assegurado aos demais cidadãos — direito garantido tanto pela Constituição quanto pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, artigos 8.2.h).
Essa centralização compromete não apenas o princípio da ampla defesa, mas também a própria vocação constitucional da corte. Como bem observou o ministro Luís Roberto Barroso, funcionar como tribunal criminal de primeira instância, como regra geral, é papel de juiz de primeiro grau, e não do Supremo Tribunal Federal [1]. A concentração de competências penais no STF desvirtua sua missão de guarda da Constituição, além de sobrecarregar sua agenda com matérias que deveriam ser examinadas por juízos ordinários.
Nesse cenário, não há justificativa democrática para que agentes públicos eleitos ou nomeados gozem de instâncias processuais distintas daquelas previstas para os demais cidadãos. O argumento de proteção institucional não pode se sobrepor ao princípio republicano da igualdade.
Essa desigualdade se acentua quando se observa que o foro por prerrogativa de função também compromete a garantia do devido processo legal, na medida em que impede o reexame das decisões por instâncias superiores — elemento essencial à segurança jurídica. Trata-se de uma distorção incompatível com as democracias constitucionais contemporâneas, nas quais o direito ao recurso está intrinsecamente ligado à legitimidade do sistema penal.
Disparidade
Nesse contexto, a comparação com modelos adotados em outras democracias revela o quanto a experiência brasileira se distancia dos padrões institucionais mais estáveis e equitativos. Em diversas democracias consolidadas, o foro especial não existe ou é reservado a um número extremamente reduzido de autoridades. Nos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Canadá, inexiste prerrogativa de foro para parlamentares. Na França e em Portugal, a prerrogativa é restrita ao chefe de Estado e, em alguns casos, a membros do gabinete ministerial — e mesmo assim, em hipóteses específicas e com forte controle jurisdicional.
Essa disparidade se evidencia também na forma como esses e outros países estruturam suas Cortes Constitucionais. Alemanha (Bundesverfassungsgericht), Itália (Corte Costituzionale), Espanha (Tribunal Constitucional), Áustria (Verfassungsgerichtshof), Portugal (Tribunal Constitucional), entre outros, adotam modelos institucionais que se dedicam exclusivamente à análise de normas e princípios fundamentais, sem acumular competências penais originárias. Essa separação funcional preserva a autoridade interpretativa das supremas cortes e assegura maior racionalidade ao sistema judicial.
Caminhar na mesma direção, no caso brasileiro, não implica apenas restringir a prerrogativa de foro, mas sobretudo reposicionar institucionalmente a competência penal, transferindo-a à primeira instância sem que isso represente supressão de garantias. Ao contrário, essa mudança amplia o acesso à jurisdição, viabiliza o pleno exercício do duplo grau de julgamento — juiz singular, tribunal local, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal —, e valoriza a magistratura de primeiro grau, formada por juízes concursados, tecnicamente preparados e funcionalmente independentes.
Sob o prisma da eficiência jurisdicional, essa reestruturação aproxima o Brasil dos padrões internacionais e contribui para a redução da sensação de impunidade seletiva, que mina a confiança da sociedade nas instituições democráticas. O fim do foro privilegiado envia uma mensagem inequívoca: a lei deve ser aplicada a todos com o mesmo rigor, independentemente do cargo ocupado.
Regime de privilégios
Essa mensagem, contudo, não se limita ao plano simbólico. A extinção do foro privilegiado contribuiria também para a racionalização do sistema de justiça brasileiro, alinhando-o a modelos institucionais consolidados nas democracias constitucionais que combinam respeito aos direitos fundamentais com eficiência jurisdicional. Ao mesmo tempo, resgata a coerência do modelo republicano e rompe com heranças institucionais que já não se sustentam sob uma ordem constitucional fundada na igualdade, na responsabilidade e no acesso universal à justiça.
O foro por prerrogativa de função é, nesse sentido, um resquício de um modelo monárquico [2] e patrimonialista de poder [3], incompatível com os princípios republicanos e democráticos que regem a Constituição de 1988. Sua manutenção ampla, como hoje estruturada, representa um obstáculo à efetividade do sistema de justiça e à concretização do princípio da igualdade substancial.
Esse vínculo histórico com um regime de privilégios foi bem identificado por Carlos Velloso, ao recordar que o foro especial reflete a lógica do Império, em que distinções e prerrogativas eram inerentes à estrutura de poder. Em uma República, sustenta o autor, deve prevalecer o respeito à igualdade — na lei e perante a lei. Como disse Milton Campos, “sem a liberdade cai-se na opressão política, sem a igualdade, na opressão econômica”, o que conduz, inevitavelmente, à naturalização dos sistemas de exceção. O foro privilegiado, conclui Velloso (2016), é uma excrescência incompatível com os fundamentos do regime democrático.
Trata-se, portanto, de uma mudança que transcende o plano meramente procedimental. A superação do foro por prerrogativa de função representa uma reafirmação dos compromissos republicanos: igualdade substancial, integridade institucional e responsabilização equânime. Em uma democracia madura, não basta que a igualdade seja declarada — é imprescindível que ela seja operacionalizada no cotidiano do sistema de justiça, sem atalhos, privilégios ou exceções.
Mais do que uma alteração técnica, o fim do foro privilegiado constitui um avanço institucional que reafirma a igualdade material, resguarda o direito ao duplo grau de jurisdição, valoriza o juiz natural e realinha o papel do Supremo Tribunal Federal ao modelo das cortes constitucionais modernas.
[1] AP 937 QO / RJ – Julgada em 03/05/2018 – Plenário do STF
[2] A Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, assegurava foro privilegiado aos membros da Família Imperial, aos Ministros e Conselheiros de Estado, bem como aos Senadores e Deputados — estes últimos apenas durante o exercício do mandato —, estendendo-o também aos Secretários e Conselheiros de Estado nos casos de crimes de responsabilidade.
[3] CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 174.
é desembargador do TJ-PB e autor dos livros Processo de Improbidade Administrativa (7ª Edição, Editora Juspodivm) e Crimes contra o Erário "2ª Edição, Editora Juspodivm).
Fonte. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/blindagem-de-parlamentares-e-fim-do-foro-entenda-as-propostas-do-congresso/
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