A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou nesta semana o Projeto de Lei 6.027/25, que trata da reestruturação do quadro permanente da Polícia Civil. Uma das emendas incorporadas ao texto, contudo, assumiu o protagonismo: a chamada “gratificação faroeste”, que prevê o pagamento de bônus entre 10% e 150% dos vencimentos para o policial que, durante o serviço, “neutralizar” suspeitos. Em outras palavras, um vale-assassinato.
Tânia Rêgo/Agência Brasil
Lei estabelece o pagamento de bônus para policiais que ‘neutralizarem’ suspeitos
A proposta de emenda foi apresentada pelos deputados Alan Lopes (PL), Marcelo Dino (União) e Alexandre Knoploch (PL). Durante os debates que antecederam a aprovação da medida, Knoploch chegou a afirmar que a “neutralização de criminosos” poderá aumentar a segurança no Rio. “Essas pessoas, se não conseguem entender o que é civilidade, têm que ser neutralizadas pela polícia. Tá com um fuzil na mão? Tem que ser neutralizado.”
Além das consequências óbvias, como o aumento da letalidade policial, advogados criminalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico apontam inconstitucionalidades em grande quantidade no texto. Um dos críticos mais vocais é o jurista Lenio Streck.
“É uma pegadinha? Uma piada jurídica? Sim, porque não pode ser sério. Um projeto tão inconstitucional que deveria já ser declarado pelo porteiro do tribunal. Poderíamos aproveitar e dar gratificação para juiz que condenar. Promotor que conseguir condenação. Onde foi que erramos? Aposto que a maioria desses deputados possui formação ou deformação jurídica. Não é de admirar o comportamento dos deputados federais da Bancada da Bala. Uma sugestão para uma emenda ao projeto: passa a vigorar no Rio de Janeiro o princípio in dubio pro tiro.”
Inconstitucionalidades mil
Vinicius Lapetina, sócio do escritório PLS Advogados, entende que a lei vai na contramão do que prevê a Constituição Federal, que tem como premissas a proteção e a valorização da vida humana.
“Na medida em que o Poder Legislativo fluminense aprova a gratificação a policiais em decorrência da ‘neutralização’ de supostos criminosos, o ímpeto do policial para atuar de forma letal só pode aumentar. O incentivo financeiro aprovado acaba por desvalorizar a vida, tornando-se justificativa para atuação radical das polícias.”
Ele entende que o resultado da norma deve ser, obviamente, o aumento dos casos de morte violenta em ações policiais, sem que isso resulte na diminuição da criminalidade.
Welington Arruda, por sua vez, enxerga vícios formais e materiais na “gratificação faroeste”. “Paga-se, na prática, por letalidade. Isso viola o direito à vida, à dignidade e ao devido processo (artigos 1º e 5º da Constituição Federal) e colide com a função constitucional da segurança pública (artigo 144). O termo ‘neutralização’ é vago, abre espaço para execução sumária como critério de desempenho e contraria as ordens do STF na ADPF 635, que determinam políticas de redução da letalidade policial no Rio.”
Ele também sustenta que a criação ou majoração de gratificação é matéria de competência privativa do Executivo e depende de estimativa de impacto financeiro e compensação fiscal.
“Emenda parlamentar inserida em projeto de carreira com esse conteúdo tende a cair por vício de iniciativa e de orçamento.”
Do texto que foi aprovado, segundo Arruda, poderia ser mantido apenas um prêmio por apreensão de armas, se fosse desvinculado de morte, com critérios objetivos, auditáveis e iniciativa correta (do Executivo), além de lastro fiscal.
O advogado acredita que, se for sancionada pelo governador Cláudio Castro (PL), a lei deve ser questionada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com pedido cautelar para suspensão do trecho sobre “neutralização”, ou mesmo ser objeto de reclamação no Supremo Tribunal Federal por afronta à ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas.
“A palavra ‘neutralização’ é um cheque em branco: substitui o devido processo por um placar de letalidade e afronta decisões do STF que exigem reduzir mortes em operações.”
Barbárie estatal
Anderson Almeida afirma que pagar bônus a policiais por matar suspeitos é, antes de tudo, um incentivo institucionalizado à barbárie por parte do Estado.
“Ela transforma a vida humana em moeda de troca e legitima a ideia de que o Estado pode terceirizar a Justiça para o gatilho, quando deveria garantir devido processo e presunção de inocência. Em termos constitucionais, é um acinte, pois atropela a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e o princípio do devido processo legal, todos pilares que não podem ser relativizados sob a desculpa de segurança pública. Pior, cria um mecanismo perverso em que a morte não é consequência eventual da ação policial, mas um objetivo recompensado.”
Ele sustenta que, além de inconstitucional, a medida é moralmente corrosiva e estimula uma lógica de “caça ao suspeito”, aproximando o Estado de práticas paramilitares e minando a confiança da sociedade na polícia.
“O Brasil, já sob constante escrutínio internacional por violações de direitos humanos, passaria a assumir de forma explícita uma política de extermínio remunerado. Isso não fortalece a segurança pública, apenas amplia o ciclo de violência e cria um cenário de guerra permanente, em que a vida de pobres e periféricos vale menos do que o bônus de 150%. É uma lei que afronta não só a Constituição, mas também qualquer noção mínima de civilidade.”
Victor Lion Brown, sócio do escritório Lion Mauro Advogados, defende que a norma é mais do que uma medida polêmica, é um convite perigoso para que se repense até onde o Estado pode ir sem violar a própria essência do Estado de Direito.
“Não se trata apenas de um debate moral ou ideológico. O vício dessa legislação é técnico e estrutural. Ao remunerar o agente público não pela legalidade de sua conduta, mas pelo resultado letal obtido, o Estado inverte sua função mais básica: proteger a vida como direito indisponível e fundamento da República. O que se propõe é uma lógica de recompensa pela morte — algo frontalmente incompatível com a Constituição Federal e com tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.”
O criminalista lembra que o Supremo, no julgamento da ADPF 635, fixou limites claros para o uso da força policial no Rio de Janeiro.
“Premiar a morte não é apenas retrocesso — é desafio direto à ordem constitucional consolidada. O resultado é previsível: essa lei tende a ser declarada inconstitucional pelo próprio STF. Até lá, porém, os efeitos sociais e jurídicos do seu estímulo podem ser devastadores.”
Populismo reeditado
Conforme lembra Thúlio Guilherme Nogueira, a “gratificação faroeste” não é exatamente uma novidade. Trata-se da reedição de uma política do Rio de Janeiro que já se mostrou inócua no passado.
“É importante voltarmos aos dados: a experiência do Rio de Janeiro nos anos 1990 mostrou que a chamada ‘gratificação faroeste’ não reduziu a criminalidade, mas aumentou a letalidade policial. Pesquisas do Iser e da própria Alerj apontaram que, após a criação do bônus, a taxa de mortes em confrontos praticamente dobrou — e a OAB-RJ chegou a registrar que os homicídios praticados por policiais triplicaram.”
A primeira versão da “gratificação faroeste” foi criada em 1995, durante o governo do tucano Marcello Alencar (1925-2014), e foi extinta em 1998, graças a uma lei de autoria do deputado Carlos Minc (PSB).
O trabalho do Instituto de Estudos da Religião (Iser) citado por Nogueira analisou 1,2 mil laudos cadavéricos de pessoas mortas em confrontos com a polícia naquela época. Dois terços dessas mortes foram caracterizadas como execuções com tiros na nuca, na orelha ou nas costas.
“Resgatar a ‘gratificação faroeste’ é um retrocesso. Uma medida que não contribuirá em nada para reduzir a criminalidade no estado do Rio de Janeiro. Ao contrário: vai aumentar a letalidade policial, já surpreendentemente alta no estado. Impressiona que, em 2025, com tantos recursos para aumentar a inteligência e aprimorar o trabalho da Polícia Civil, notadamente o preventivo, os deputados escolham o ultrapassado caminho da violência e aprovem uma ‘permissão para matar’”, lamenta Maíra Fernandes, ex-presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro.
Reação
O Ministério Público Federal e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro reagiram à lei. O MPF enviou ao governador Cláudio Castro um ofício assinado pelo procurador Júlio José Araújo Júnior, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão. No texto, ele aponta três grandes problemas na norma aprovada pela Alerj:
Vício de iniciativa: a concessão de gratificações deveria ser proposta pelo Executivo, e não por deputados estaduais;
Descumprimento de decisão do Supremo Tribunal Federal: a medida contraria determinações estabelecidas no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635;
Violação do direito à segurança pública: o órgão entende que o pagamento de bônus por mortes estimula o uso excessivo da força e aumenta a letalidade, sem comprovação de impacto positivo na segurança.
A Defensoria Pública, por sua vez, acionou o STF contra a medida. Na petição, assinada pelo defensor Marcos Paulo Dutra Santos, coordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH), o órgão sustenta que a “gratificação faroeste” padece de um vício de origem insanável: sua extrema e perigosa ambiguidade.
“O vocábulo ‘neutralizar’ pode comportar uma gama de interpretações, que vão desde a captura de um foragido da Justiça, a efetivação de uma prisão em flagrante delito, a imobilização de um indivíduo que ofereça resistência até, no extremo mais grave e problemático, o seu abatimento, a sua morte.”
Por meio de nota, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) manifestou repúdio à iniciativa da Alerj.
“Transformar a letalidade policial em critério de bonificação é oficializar o ‘faroeste’ nas ruas, sobretudo nas periferias, onde essas práticas já são recorrentes. Isso não só tende a elevar o número de mortos pela polícia, como também expõe os próprios agentes a mais riscos. Nos quatro primeiros meses deste ano, as mortes de policiais em serviço cresceram 105% em relação ao ano anterior”, diz trecho da manifestação.
Clique aqui para ler a petição da DP-RJ
PL 6.027/25
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