Produtores de seis Estados planejam cultivo experimental de cânhamo industrial em 2026
Planta da família da Cannabis sativa com baixo THC deve rotacionar com culturas como soja, milho, algodão e cana
Mesmo sem a regulamentação do cultivo do cânhamo no Brasil, produtores rurais de Mato Grosso, Bahia, Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais estão preparando áreas de até 20 hectares para cultivos experimentais dessa planta em rotação com outras culturas como soja, milho, algodão e cana-de-açúcar.
O objetivo é produzir fibras e alimentos a partir do cânhamo, que tem baixo teor de THC (tetrahidrocanabinol, a substância responsável pelos efeitos psicotrópicos da maconha).
Cânhamo e cannabis pertencem à família da Cannabis sativa, mas as plantas de cânhamo produzem baixos níveis de THC, enquanto as de cannabis normalmente contêm de 5% a 20% de THC. Por outro lado, o cânhamo possui altos níveis do químico CBD (Canabidiol), útil para fins medicinais, enquanto a cannabis com alto teor de THC contém um mínimo de CBD.
A intenção de plantio foi revelada à Globo Rural por Thiago Ermano, presidente da Abicann (Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis e Cânhamo), criada em 2017 para incentivar políticas públicas e regulatórias e propor ações ao desenvolvimento econômico e social de empresas e profissionais técnicos que atuam nos mercados da cannabis medicinal e do cânhamo industrial no Brasil.
Segundo ele, os produtores vão aguardar a regulamentação do plantio pela Agência Nacional de Saúde (Anvisa), prevista para esta terça-feira, 30 de setembro, mas, se houver mais demora, pretendem acionar a Justiça em busca de autorizações para o cultivo, assim como já fizeram associações de pacientes, pessoas que usam medicamentos à base de cannabis e algumas instituições de pesquisa.
O plano é obter habeas corpus para acelerar a regulamentação do plantio do cânhamo com baixo psicoativo, que interessa não apenas para fins medicinais, mas para 21 setores econômicos, entre eles construção civil, indústria têxtil e indústria de nutrição animal.
“Os produtores já entenderam que o cânhamo é uma commodity estratégica que representa agregação de renda, mas o cultivo precisa ser tropicalizado. Já temos dez startups trabalhando no setor, algumas com autorização judicial para pesquisa. O Estado permanece engessado e quem tem inovado é a iniciativa privada", diz Ermano.
O presidente da Abiccan afirma que tem feito pedidos ao governo para incluir a discussão sobre o cânhamo inclusive na COP 30, que acontece em novembro, em Belém (PA).
Produtores
Alguns produtores rurais, como o baiano Williarde de Almeida Souza e o fluminense Carlos Rifan, participaram das visitas técnicas da missão internacional da Abicann que esteve no Paraguai de 22 a 24 de setembro para conhecer cultivos de cannabis medicinal e cânhamo industrial e também os desafios regulatórios e comerciais que impactam a produção, processamento e distribuição dos produtos originados da planta.
A viagem ao país que é o maior exportador de produtos de cânhamo da América Latina teve a parceria do Centro de Tecnologia e Inovação da Cannabis (CTICann) e da Universidade Federal de Integração Latino-Americana (Unila).
O cânhamo já tem autorização de cultivo em mais de 60 países e um mercado global que pode chegar a US$ 100 bilhões em 2026, segundo estimativa da Prohibition Partner, empresa inglesa de análise de mercado da cannabis.
Com propriedade no município de Vereda, no extremo sul da Bahia, Williarde prospecta o mercado do cânhamo há mais de quatro anos. Ele pretende plantar experimentalmente 1,5 hectare de cânhamo para fibras e produção de tijolos. A longo prazo pensa usar outras áreas da família na região para o plantio comercial e também negocia com produtores de cacau interessados no projeto.
“Estou aguardando as regras que serão anunciadas pela Anvisa para entender o cenário, mas se o cultivo para outros fins, além do medicinal, não for liberado, vou estudar o caminho da judicialização porque já estamos muito atrasados em relação ao Paraguai, que também tem entraves, mas já autorizou o cultivo e tem contratos de exportação”, declara Williarde, um apaixonado por inovação que também trabalha como engenheiro mecatrônico.
Ele disse que, além de conhecer os desafios do cultivo no Paraguai, um dos destaques da viagem foi ver o quanto a pesquisa sobre cannabis e cânhamo já avançou em melhoramento genético e cultivares na Unila, universidade que fica em Foz do Iguaçu, na fronteira Brasil-Paraguai.
Carlos Rifan, representante de marcas internacionais que fornecem produtos para a cannabis medicinal, está iniciando um projeto para plantio experimental de cânhamo industrial com dois sócios na região norte fluminense em 2026.
O plano é cultivar o cânhamo para produção de fibras e outros produtos na entressafra da cana-de-açúcar em um hectare de um alambique que já produz uma cachaça com terpenos da cannabis. O plantio será outdoor, diferentemente da maioria dos cultivos para fins medicinais, que ocorre em estufas.
Carlos Rifan participou de missão que esteve no Paraguai para conhecer cultivos de cannabis medicinal e cânhamo industrial — Foto: Divulgação
Os sócios já estão em busca das sementes. Rifan diz que, se for necessário, eles vão buscar habeas corpus na Justiça para ter a autorização de cultivo e pretendem ceder espaço de pesquisa para estudantes de universidades parceiras.
Ele também se surpreendeu com o atraso do Brasil em relação ao Paraguai na visita à Pharma Farmacêutica, uma empresa do Paraguai que teria recebido US$ 10 milhões de investidores americanos há seis anos para produzir cânhamo, desenvolveram genética e maquinário e estão colocando os produtos no mercado agora.
“Também estivemos em uma cooperativa no norte do Paraguai que atende milhares de produtores familiares que pegam a semente da Espanha e produzem o cânhamo para vários fins.”
Fim do prazo
Nesta terça-feira, vence o prazo dado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) à Anvisa para a regulamentação do cultivo da planta no país. Empresas e pesquisadores temem, no entanto, que a regulamentação, que já foi adiada por quatro meses, seja restrita para o cultivo visando fins farmacêuticos, sem considerar o potencial do cânhamo para a produção de fibras, alimentos e centenas de outros produtos.
Daniela Bittencourt, pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, que apresentou no início de setembro um relatório sobre os caminhos regulatórios para o cânhamo no Brasil formulado pela empresa de pesquisa em parceria com o Instituto Ficus, diz que o cânhamo tem potencial enorme para ser um novo polo produtivo no país, uma nova commodity, mas não pode ser um monopólio da indústria farmacêutica.
“Atualmente, o SUS (Sistema Único de Saúde) tem que importar o insumo para fornecer medicamentos. Mas não faz sentido autorizar o plantio para um determinado uso e não para outros. Precisamos de uma regulação mais ampla que contemple a importação de sementes, realização de pesquisa, teste de cultivares, segurança do plantio, rastreabilidade e regras para organizar a cadeia produtiva.”
Ela diz que a Embrapa, onde trabalha o tema há três anos, tem sido muito procurada nos últimos meses por produtores interessados em plantar o cânhamo. “Mesmo que a regulamentação venha para atender apenas fins medicinais, abre precedentes.”
Para a pesquisadora, a ausência de regulamentação clara para autorizar pesquisas com cannabis tem travado o avanço científico no país. Ela apontou a burocracia excessiva, a falta de transparência nos processos de autorização de estudos e a morosidade na importação de insumos como grandes entraves à realização de atividades científicas.
Daniela disse ainda que a situação brasileira contrasta com o avanço significativo de países como China, Estados Unidos, Canadá e França, que já investem milhões em pesquisa, desenvolvem novas genéticas e manejos e se estabeleceram no mercado global.
Tarso Araújo, pesquisador de cannabis há 20 anos e consultor do Instituto Ficus (fundado em 2020 para apoiar a inovação e o avanço das políticas de produtos naturais que atualmente são proibidos no país, mas têm evidente valor terapêutico ou econômico, como a cannabis e o cânhamo), diz que, depois de tanta espera do setor, a regulamentação pode ser inócua se não permitir a produção de fibras e sementes.
Exceção
Para abrir essa cadeia, ele diz que a Anvisa precisa criar uma exceção para o cânhamo na Portaria 344, que lista uma série de plantas que não podem ser cultivadas no país por serem consideradas drogas.
“Até o momento, a Anvisa deu a entender que está preocupada apenas com a regulamentação para fins farmacêuticos, o que é um equívoco do ponto de vista econômico e também jurídico. Já o Ministério da Agricultura, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e até o presidente da Frente Parlamentar da Agricultura na Câmara, Pedro Lupion, estão interessados em regulamentar o cultivo também para produção de fibras e alimentos.”
Segundo Tarso, a decisão do STJ de novembro de 2024 tem quatro teses e a primeira é que o cânhamo com menos de 0,3% de THC é lícito e não deveria nem estar sujeito à lista da lei de drogas. Por isso, se não vier uma regulamentação mais ampla, a União deve virar objeto de novas ações judiciais.
“Se qualquer produtor quiser cultivar cânhamo para produção de alimentos, ele vai ganhar a ação na Justiça, mas vai levar anos.”
Tarso afirma que, sem a regulamentação para os cultivos experimentais, o Brasil já perdeu um tempo precioso para o entendimento dessa cultura. São necessárias medidas de segurança para o plantio, especificação de variedades a serem importadas, como fazer descarte das plantas, regras de fiscalização e rastreabilidade, por exemplo.
A advogada Patrícia Villela Marino, presidente do Instituto Humanitas, integrante do Conselhão da Presidência da República e coordenadora do grupo que produziu o relatório da Embrapa-Ficus, diz que foram necessários dois anos para a construção de dados e a busca em outros países de parâmetros para a legalização do cânhamo.
“É preciso mudar a mentalidade dos anos 1960 e 1970. Falta a atualização do conhecimento sobre o cultivo dessa planta. É um produto cultivável, sem psicotrópicos e sem condição negativa para a sociedade. Temos que separar o joio do trigo e nos libertar de mentiras que foram propagadas por pessoas nefastas.”
O advogado especialista em direito regulatório Rafael Arcuri, presidente da Associação Nacional do Cânhamo (ANC), diz que, desde a fundação em 2021, empresas de cannabis medicinal e produtores rurais procuram a associação para entender esse mercado. Ele diz que, infelizmente, ainda é preciso mostrar para o governo e a Anvisa que o cultivo do cânhamo não representa um risco para o país e não é um problema de saúde pública.
Flor de cânhamo em estufa no Paraguai — Foto: Divulgação
“A França, por exemplo, nunca proibiu o cânhamo e não é um 'narcoestado'. O básico é que o cânhamo é da mesma espécie da cannabis, mas é incapaz de gerar efeito entorpecente.”
Arcuri diz que o grão do cânhamo tem 33% ou mais de proteínas, além de ácidos graxos, óleos essenciais e seu cultivo é menos danoso para o solo por ter raízes profundas e devolver nitrogênio para a terra. É uma planta também muito resistente a pragas, criando barreiras para a safra seguinte no modelo de rotação de culturas, e tem uma captura de carbono pela fibra maior que o de uma floresta.
Segundo ele, um estudo da ONU mostrou que uma safrinha de trigo rende até 30% a mais se for precedida do plantio de cânhamo, planta que pode ser 100% aproveitada, desde as raízes, fibras, grãos e flores.
“Temos grandes players interessados na regulamentação do cânhamo. Tem aqueles que têm uma sensibilidade real sobre o valor e a entrada no campo do cânhamo como rotação e não substituição da soja e outros que acham que a cultura vai ser um ‘ouro verde’. Nosso papel agora é tirar a cultura da ilegalidade, trabalhar o estigma e mostrar que é apenas uma commodity como qualquer outra.”
Anvisa
Procurada, a Anvisa respondeu por meio de nota que as ações para o atendimento à determinação do STJ referente ao plantio de cannabis estão sendo coordenadas pela Advocacia Geral da União (AGU), já que o tema envolve diferentes órgãos e competências da União.
“No âmbito da Anvisa, a regulamentação é feita por meio de Resoluções de Diretoria Colegiada (RDC). O plano prevê ações específicas para a Anvisa, que no cronograma previsto, estão entre as últimas ações a serem concluídas”, diz a nota, argumentando que não poderia antecipar outras informações antes do término do processo.
Limite de 0,3% de THC pode ser inviável
Especialistas da área alertam para um problema que pode afetar o cultivo do cânhamo no país: a limitação do teor de THC em 0,3%, como está na proposta inicial.
Segundo o agrônomo Sérgio Barbosa, fundador da startup Adwa, que trabalha com tecnologias para quem quer cultivar cannabis no Brasil, o limite coloca em risco a competitividade da produção, pode causar um prejuízo muito grande e não ser competitivo no mercado internacional. “E se passar de 0,3%, vai descartar toda a produção? Quem vai assumir o risco da quebra do produtor?”, questiona.
Em sua tese de doutorado na Universidade Federal de Viçosa, ele trabalhou a caracterização química da cannabis e fez cruzamento de 16 variedades, incluindo mudas dos Estados Unidos, para tentar obter uma mais adaptada ao clima e solo brasileiro. Todas ficaram bem acima do 0,3% de THC e só uma ficou abaixo de 1%, diferentemente do que os fornecedores tinham informado.
Efeitos da radiação
“Tem uma explicação fisiológica para isso: a alta radiação ultravioleta e as altas temperaturas produzem uma planta com teor mínimo de THC maior que o 0,3%. Muitos países já não usam esse limite no controle do plantio, como Paraguai, Nova Zelândia, Suíça e Nova Zelândia. Nos EUA, tem o ‘hot hemp’, variedades que deveriam produzir até 0,3% de THC, ultrapassaram esse limite e quebraram empresas.”
A proposta do agrônomo, que deve assumir a direção do recém-criado núcleo de desenvolvimento da cannabis na unidade da Unesp em Ilha Solteira, é de fixar um limite de pelo menos 1%, mas o ideal seria entre 1% e 2%. Segundo ele, a maioria dos países que regulamentaram o cultivo consideram que para ser classificado como droga tem que ter mais de 2% de THC. No vizinho Paraguai, o limite é 0,5%.
Daniela Bittencourt considera que é preciso ampliar a pesquisa que até hoje só focou em fins medicinais — Foto: Divulgação
Tarso Araújo, do Instituto Ficus, diz que essa questão tem sido muito discutida no Brasil e que o fato de o país ter possibilidade de produção em latitudes bem diferentes deve gerar resultados bem diferentes.
“No sertão da Paraíba, por exemplo, a produção vai passar muito desse limite pelo fotoperíodo, as muitas horas de sol. Na região Sul, pode ser possível. Mas, será preciso desenvolver a genética da planta e adaptar ao clima e solo brasileiro.”
Segundo ele, o limite de 0,3% também é pouco lucrativo porque é preciso reduzir o tamanho da planta, por exemplo, no caso das fibras. “O fato é que esse limite não foi uma definição científica e sim um percentual arbitrado.”
Para Daniela, da Embrapa, é preciso ampliar a pesquisa que até hoje só focou em fins medicinais. “Existe muito pouco conhecimento sobre as questões agronômicas da planta. O nível de THC de 0,3% deve ser inviável pela luminosidade que temos no Brasil. Precisamos de uma liberação sem esse limite para evoluir na pesquisa de cultivares.”
Fonte. https://globorural.globo.com/agricultura/noticia/2025/09/produtores-de-6-estados-planejam-cultivo-experimental-de-canhamo-industrial-em-2026.ghtml
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